domingo, março 20

Sono

Sento-me, paciente, à espera que o sono espreite.
Está ali aos pés da cama, indeciso, a pensar se deve ou não... afinal, afinal agora irrompeu pelo meio das riscas e dos quadrados da coberta.
Anda ali, que giro!, a escolher o melhor caminho até mim.
Agora passou em cima dos meus dedos. Ai!, faz cócegas...
Parou porque estava cansado de tanto rir e fazer rir.
Mas agora ficou sério, a fitar-me, como que a dizer que ainda é cedo. Sim, prefere ficar mais um pouco a vaguear pelas suas ideias, a imaginar o sonho que me vai fazer sonhar.
E eu cá estou, paciente, à espera que o sono espreite.
Ontem chegou mais cedo. Sabem?, é que estava cansado e nem quis brincar. Nem olhou para os meus dedos pedintes de cócegas. Não. Subiu a cama e enroscou-se ao meu lado.
Era tão grande que nem me deu um beijo de boa-noite, o malandro!
Hoje parece que vai fazer gazeta e dormir sozinho, como se estivesse zangado. Onde irá ficar, no chão? Por cima dos livros ou sentado na cadeira, até cair de sono e estatelar-se na alcatifa?
Como são complicados os sonos de hoje! Deve ser da violência na televisão. Sim, das novelas, dos filmes de terror ou até dos programas... dos programas, quê? É tudo uma grande seca!
Não admira que o sono ande às avessas, dando turras nele próprio porque não consegue achar o caminho até mim nesta encruzilhada de ideias.
Bolas... e se eu fosse dormir?
Não consigo. É ele quem decide e pronto. Eu limito-me a ficar, paciente, à espera que ele espreite.
Finalmente parece estar a subir as minhas pernas. Sim, lá vem ele. Então?, pareces indeciso. Não quer avançar de qualquer forma, por isso tem de escolher o melhor caminho. Agora vai um pouco pela esquerda, quase encostado à parede.
Pronto! Agora descobriu a anca e não quer outra coisa: sobe e desce a perna como se fosse um escorrega, usufruindo das curvas. Que criancinha!
É mesmo tolo, o meu sono. Está aqui a usar-me que nem um baloiço. Mas é bonito de ver, nem que tenha de esperar a noite toda.
Uma vez passei a noite em claro porque o sono foi beber um copo com os amigos. Palavra puxa palavra, uma cerveja pede outra, sabem como é, e só apareceu já o sol tinha rendido a madrugada. E eu aproveitei para pôr a leitura em dia.
Depois, contou-me que tinha ido a uma discoteca e assistiu a uma briga entre dois homens. Disse que nunca mais queria fazer aquilo e pediu-me desculpa por me ter deixado sozinha.
Eu perdoei-o porque fiquei cheia de saudades do meu sono. Como hoje, embora ele não saiba. Não quero maçá-lo, prefiro esperar.
Enquanto isso, vou-me lembrando da violência na televisão, das minhas leituras, das brigas entre dois e mais homens.
De repente, começo a sonhar um sonho lindo. Porque o meu sono é o mais bonito de todos. É o meu melhor amigo.