O nosso bem mais precioso
Temos sempre uma tendência enorme para acreditar que os nossos problemas são os piores do mundo. O dinheiro não chega para tudo, o trabalho já não dá o gozo que dava, os amigos parecem esquecer-se de nós todos ao mesmo tempo, os novos conhecimentos são fúteis, na maioria das vezes, e há sempre uma porra de uma dor que teima em aparecer nas alturas mais impróprias. Se formos a contabilizar as conversas que temos no dia-a-dia, quase de certeza contamos outros tantos desatinos, porque, simplesmente, não há quem não tenha motivos para se queixar. Em boa parte, a responsabilidade pode ser uma medida pela qual tabelamos tudo o resto e o facto de as coisas serem sérias parece transformar em pesados fardos assuntos que há uns anos tinham uma importância muito residual. No outro dia, bastou-me uma conversa de uns vinte minutos para pensar, mais uma vez, que a vida não tem de ser tão complicada como pensamos ou, às vezes, a pintamos. O médico veterinário dos meus cães deve ter aí uns quarenta anos e há tempos descobriu que sofre de uma doença que o obriga a uma medicação vitalícia. Já me tinha contado isso e desta vez, quando lhe perguntei se tem andado bem, o seu olhar entristeceu-se de novo. Ele não o diz, mas eu acredito que esteja a sentir-se velho. Tão novo ainda é, mas o facto de ter de tomar um medicamento para o resto da vida roubou-lhe uns anos de sossego. Contou-me que há dias foi com o pai ao hospital e deparou-se com uma urgência cheia de velhos. Velhos e sozinhos. Velhos e trapos. Sem ninguém que os amparasse, sem ninguém que lhes levasse um pijama. Um deles estava verde, desse verde canceroso que não vai deixá-lo viver muito mais. Os outros exibiam outras cores. “Nenhum tinha uma cor normal”, disse o médico dos meus cães. E, de novo sem o confessar, mostrou o seu medo de também vir a ficar desamparado. Joga golfe, aprendeu vela e agora anda a ver se lhe ensinam a jogar bridge. “Tudo coisas que eu possa fazer quando for velho”, atirou, de olhar preso à urgência dos velhos. Depois disse: “Temos de aproveitar a vida. Não vale a pena preocuparmo-nos com coisas que não têm importância”. Eu anui, também penso assim. Só preciso é de relativizar o que realmente não presta. E há tanta coisa que não presta, se há... É curioso como dantes eu não dava valor à expressão “haja saúde”. Hoje, dou por mim a pensar se esse não será o nosso bem mais precioso. A vida é um contrato a termo certo e só devemos ter medo da doença. E da doença da velhice.
2 Comments:
A "velhice" está no olhar dos outros...A minha mãe costumava dizer, quando lhe falavam de velhice: "velhos são os trapos, as pessoas, não".
A circunstância é a matéria principal de que se faz a alma humana...e ela, a circunstância, não tem idade...
Pois... se nos fosse possível escolher.
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