quinta-feira, março 31

Poema

Afinal, anda por aí gente atenta! Vejam lá que as minhas dicas sobre os tigres até suscitaram um poema!... Não é meu, obviamente, e como estou autorizada a divulgá-lo, aqui vai:


Improviso sobre a arte da caça...

A pele
arranhada dos tigres ausentes
(ou seria a alma da mobília?)
a floresta tem muitos silêncios felinos
as cifras é que não estão
ao alcance de todos.


Boa, Ademar!

Arroz de frango

Da única vez que estive com o nosso “escritor maldito”, ganhei coragem para me dirigir a ele sem levar na mão um dos seus livros para o autógrafo da praxe. Azar o meu, que até hoje não posso orgulhar-me de ter uma dedicatória de Saramago, apesar de uma das minhas estantes exibir a obra quase completa, e ainda levei um ralhete por estar ali a interromper a cadência da esferográfica com que debitava breves palavras a desconhecidos, mas com pulso firme. Tão firme quanto o rosnar com que fui presenteada por aquele homem que, melhor do que ninguém, sabe mostrar o quanto uma pessoa lhe causa enfado. Contudo, não desarmei. Bichanei-lhe: “Estou aqui para lhe dizer que o senhor é uma pessoa muito bonita”. O homem, valha-me deus, ia tendo um fanico. Estava prestes a dedilhar em mais um livro, mas fez recuar o gesto e olhou-me de frente, como eu gosto que as pessoas me olhem. Agradeceu as palavras com um afago na minha face direita e trocámos um cumprimento de mão. Se eu fosse fundamentalista, nunca mais tinha lavado o rosto nem a mão, também direita.
Antes, porém, já lhe tinha escrito. Numa das minhas longas e saudosas noites de leitura, ganhara coragem para mandar-lhe um subscrito cheio de palavras ilegíveis e de outras tantas frases sem sentido. Nunca mais me esqueço de como comecei essa missiva: “Acabei de comer o meu prato favorito – arroz de frango”. Era aqui que eu queria chegar: adoro arroz de frango. Aliás, adoro o frango em toda a sua plenitude, seja cozido, seja estufado, seja estorricado numa brasa, seja de que forma for. Só não posso dizer que o aprecio cru, porque não experimentei. Ainda.
Toda a gente tem o seu prato favorito. Uns gostam de tripas, outros de caracóis, outros ainda de francesinhas (mesmo que seja só em imaginação, porque ainda não ganharam coragem para ir ao Porto comê-las...), de arroz à valenciana, de bacalhau à Braga, de filetes de polvo com arroz do mesmo, ou de enchidos, que também os há muito bons. Mas eu gosto de frango, o que querem? Até parece que é pecado gostar de coisas simples, como arroz de frango. Gosto de coisas simples, porque sou uma pessoa simples, ora. E fico fula quando encontro gente que só sabe complicar. Era aqui, mais uma vez, que eu queria chegar: por que será que as pessoas tendem sempre a complicar o que não deve ser complicado? Fala-se num café e logo nos mostram uma agenda cheia de idas ao ginásio ou ao cabeleireiro; fala-se num jantar e fica-se a saber que não vai ser possível dentro dos próximos cinquenta anos, o tempo previsto para durar a carestia que atravessa os bolsos de todos nós; fala-se numa caminhada à beira-mar e, deus me livre, nem pensar, que o corpo tem de dormir para ficar em forma; sugere-se uma sessão de cinema que não seja à segunda-feira e, ora bolas, afinal não vai poder ser... por causa da quadratura da circunferência.
Eu cá julgo que a vida é para ser vivida sem agendas, à medida do dia que acabou de passar e sem pensar se a noite que aí vem vai ou não prejudicar o orçamento de estado ou a rotação dos planetas que compõem o nosso sistema solar. Sou pelas coisas simples, adoro pertencer ao grupo dos que têm resposta imediata: sim ou não, em vez do “vou ver se dá, depois digo”. Se vivêssemos em estado de sítio e fosse decretado o recolher obrigatório, ainda compreendia. Mas não. Cá para mim, as pessoas têm medo de viver. Agarram-se à sua rotina de oito horas de sono, ao levantar cedo só porque acham que têm de arrumar a casa, à convicção de que em dias de trabalho um café depois do jantar é coisa que as deixará com uma grande neura na manhã seguinte. Haja paciência! E eu é que me queixo das cãs que me nascem a cada segundo... e eu é que, dessas oito horas a que tenho direito, não consigo dormir mais do que uma e a seguir faço trezentos quilómetros de estrada.
Sei que cada um é como cada qual, mas continuo com a impressão de que nem toda a gente sabe dar valor à vida, à saúde, à juventude sem vícios e à estabilidade que o trabalho proporciona. Por vezes, parece-me que, se não houver problemas, há que arranjá-los para manter a mente ocupada, não vá dar-se o caso de se morrer de tédio. Morrer, vamos morrer todos. Por isso, enquanto andamos neste mundo e podemos aceder ao que de bom ele nos dá, por que não deixar de lado as convicções? Razão tem o Buda, que se borrifa para o politicamente correcto e tira o melhor partido da vida, em todos os aspectos. Tu, ó rapaz dos canários, andas aí a matar-te com as tuas contabilidades e quase não estás com as tuas meninas! Tu, ó rapariga do chá, que também andas numa fona, a trabalhar de sol a sol para chefes mal intencionados, quando devias era, nem que fosse só uma vez, mandá-los àquela parte! E tu, rapariga do Amor Maior, já pensaste que o teu carro, um dia destes, está cheio de bolor no motor?
E eu? Estou com fome e em cima do fogão está um tacho de arroz de frango...

quarta-feira, março 30

Panthera tigris

Há tempos, talvez já tenha passado um ano, tive um desabafo com o meu amigo TT que o fez dizer qualquer coisa como isto: “Vai ver que dia destes tem um tigre em casa a arranhar-lhe a mobília”… Obviamente que a referência não era ao animal propriamente dito, mas não deixa de ser curioso como as temáticas por vezes são recorrentes, mesmo com outras pessoas. Se é possível estabelecer comparações entre humanos e felídeos, então eu sou tigre. Porque o tigre é um animal solitário, raramente é visto na companhia de outro tigre, tem muito de misterioso e uma beleza indescritível. Bom, não é, com certeza, neste parâmetro que me revejo, se bem que isso, para o caso, também não interessa nada (mais pareço a outra)!
Para quem, como eu, também é ou gosta do tigre, aqui ficam umas curiosidades sobre este predador.

Panthera tigris, assim se designa a espécie, é o maior dos felídeos, chegando os machos a atingir os dois metros de comprimento (sem contar com a cauda, que mede um metro). Caça sozinho, alimenta-se de uma série de herbívoros e gosta em particular do porco-espinho…
As crias só abrem os olhos aos 14 dias e mantêm-se sob a protecção maternal até aos 2 anos. Quando têm seis meses, o seu tamanho assemelha-se ao de um cão. Ao fazer um ano, já têm o tamanho de um leopardo adulto.
Das oito subespécies que havia, apenas subsistem cinco: tigre de Bengala, tigre da China, tigre da Sibéria, tigre de Sumatra e tigre da Indochina.
O tigre pode viver até 20 anos e enfrenta qualquer animal, incluindo o homem. Consegue saltar nove metros em superfícies planas e cinco em altura. O maior encontrado até hoje foi um tigre da Sibéria, com 2,60 metros e 320 quilos.
O tigre só tem companhia em dois casos: para o acasalamento (o macho cumpre à risca… as suas leis territoriais, fazendo suas companheiras todas as fêmeas do seu território) e quando a mãe ainda não deixou as crias à sua sorte. Aliás, a única maneira de, obviamente à distância, se distinguir um macho de uma fêmea é pela presença dos filhotes.
As listas da cara do tigre são como a impressão digital de uma pessoa. Não há duas pessoas com a mesma impressão, assim como não há dois tigres com o mesmo padrão de listas. E, apesar do seu peso e tamanho, move-se com uma elegância extrema, não fazendo o menor ruído.
Os tigres são animais misteriosos, possuem códigos próprios e inúmeras maneiras de comunicar entre si.
Agora pergunto: será assim com os tigres humanos?
Nota: Continuo sem tigre a arranhar a mobília.

terça-feira, março 29

Mesquinhez

A mesquinhez não conhece limites. Não conhece fronteiras, não conhece barreiras, não conhece sequer as pessoas a quem é dirigida. Resta saber se quem a tem alguma vez chegou a conhecer-me. Acredito que não. Nunca me conheceu, nem nunca fez um esforço para tal. Andou ali, a sugar tudo o que eu tinha de bom para lhe dar, a aproveitar-se da minha sinceridade para me cuspir na cara à primeira oportunidade. Quando dei por isso, mostrei-lhe a porta de saída.
Pensava eu que, com o passar do tempo e tratando-se de pessoas adultas, a amizade fosse um valor a preservar. Andei eu a impor a mim própria uma conduta porque tenho respeito pelas pessoas e pelo passado que vivi com elas e, afinal, a mesquinhez voltou a atacar. Atacou há uns meses, atacou hoje de novo. É triste. É triste porque aquela pessoa para quem já fomos tudo passa por nós na rua e, só porque leva companhia, quase faz de conta que não nos vê. Mais uma cuspidela.
E não me venham dizer que não tenho nada a ver com o assunto, pois sei que não tenho. O meu assunto aqui é outro: é eu pensar que tinha ali um amigo e que eu era amiga. Mas aos amigos não se cospe na cara. Vá quem for ao nosso lado, não se cospe na cara de um amigo. Os meus amigos só me perdem se quiserem. Pois bem: tens o que quiseste ter.

O coração do homem existe para conciliar as contradições mais notórias, David Hume

Xuxa Negra

Dado o adiantado da hora, o metro ia quase em silêncio. De repente, saída de não se sabe onde, eis que uma rapariga – teria o quê, uns 13 anos? – resolve acabar com a pacatez de uma viagem de regresso a casa. Armada com uma voz estridente e sotaque de dar a volta à tripa, entrou e lá foi com os amigos para o fundo da carruagem. E mesmo que eu tivesse ido para os antípodas do veículo, não me livraria daquele espectáculo, por isso, resolvi manter-me no mesmo banco… a ouvir. O que não exigia, como se pode perceber, muito esforço da minha parte.
Aquela voz pindérica não se calou todo o tempo. Ou porque tinha visto a Xuxa Negra, ou porque a Xuxa Negra também ia a Fátima mas não queria que ela fosse no seu carro (seu da Xuxa Negra, entenda-se), lá tive de aturar o relatório até à minha paragem. Bom, fiquei a saber que a Xuxa Negra, além do mais, tinha andado metida com não sei quem e a fazer não sei que coisas. Em bom rigor, a Xuxa andava na boca de toda a gente e pelos vistos não sabia. Se o aspecto da Xuxa for como o da narradora, está bom de ver que não lhe vai bastar esta ida a Fátima para se ver livre dos pecados…
Voltando à narradora: com tão pouco de decoro como de estilo, classe e até bom senso, não lhe adivinho grande futuro. Deve ser daquelas famílias em que os filhos, vendo o exemplo dos pais, são capazes de comportamentos dez vezes piores e cem vezes piores serão os dos seus filhos e por aí adiante. Como é que este país há-de ir para a frente? Valha-nos um milagre! Ou se calhar não... pois ainda teríamos de ir a Fátima e dar de caras com a Xuxa Negra, safa!!!

segunda-feira, março 28

Estar com a telha

Hoje estou com a telha. Depois de um fim-de-semana como há muito não tinha, eis que o calendário me disse que é segunda-feira, que é necessário voltar ao trabalho. Ainda por cima, avizinha-se uma semana comprida e não me cheira que venha a ter algum condimento aliciante.
Está de chuva, o tempo que dizem ser próprio para este calendário. E eu estou com a telha. Se calhar, o motivo nem é essa coisa chamada rotina a que fui obrigada a regressar. Não, se calhar é mesmo outra coisa que também começa a ser rotineira, para mal dos meus pecados… que é o facto de as pessoas serem incapazes de me surpreender. Mas que se passa? Perdeu-se o espírito de iniciativa?
Estou com a telha, já ninguém me surpreende! Talvez tenham medo…
Fica o consolo de ter ouvido os lobos, de os ter visto, de ter sentido que gostaram de mim

quinta-feira, março 24

Esta é para ti


Esta é para ti, rapaz que ainda não conheço. Li o que escreveste e encontrei algo em que devias pensar: "Ninguém consegue atravessar a fronteira para dentro de outra pessoa, pela simples razão de que ninguém tem acesso a si mesmo". Quem escreveu? Aquele americano que não conseguiu aliciar-te com a história do Mr. Bones...

canis lupus


Ando há uns anos a ver se eles me uivam. Desde aquela expedição à serra do Larouco, onde o vento zurzia a uma velocidade gélida, ando a ver se eles me uivam. Nessa noite, o biólogo de serviço bem tentou, bem lhes enviou a voz que eles têm, mas não obteve resposta. Os juvenis, se os havia, estavam bem enroscados debaixo das mães, e as mães deviam estar bem atentas aos filhotes que tinham para amamentar e não se deram ao trabalho de responder ao chamamento dos humanos.
Agora noutras latitudes, vou estar de novo perto deles no fim desta semana, tão perto como quando a Urze me fitou o suficiente para que eu a adoptasse. Pobre lobinha, que trocou comigo um olhar fugaz para morrer tempos depois, sem que ninguém tivesse sabido de quê. É pena, é sinal que eles também nos morrem e isso causa tristeza, mesmo não passando de criaturas selvagens. Também não verei o Nemrod. Era venerado por todos os elementos da alcateia, admirado pelos visitantes e único na sua condição de mais antigo. O patriarca.
Os lobos têm coisas curiosas, e a maneira como se organizam faz-nos pensar duas vezes sobre a nossa pretensa inteligência. Por muitos que sejam os membros da família, só há um casal – e apenas um – que procria. É o alfa, ao qual compete também ditar outras regras de convivência e sobrevivência. Na hierarquia, segue-se o casal beta, que se tornará alfa quando vagar o lugar de quem ainda detém as rédeas. E ninguém lhes disse que tem de ser assim. Eles sabem e pronto. Como sabem escolher o lobo mais fraco, sobre o qual a alcateia faz recair invariavelmente todos os acessos de fúria. Regra geral, é o mais débil em termos físicos e o menos prestável em termos de caça. O omega.
Ando há uns anos a ver se eles me uivam e agora também vou alimentá-los. Pode ser que me deixem vê-los. Sim, que me deixem. É que o lobo não está à nossa mercê, não vem ao nosso encontro a não ser que queira. Sabe bem que o homem nem sempre é amigo e, embora a lenda o tenha atirado para a condição de lobo mau, a verdade é que o medo do confronto é incomparavelmente maior do lado de lá.
O lobo teme-nos. Nós é que pensamos que não.

Menino Jesus - Parte (para já) final

(...) Também não sei o que é ter uma conversa de filho para pai e olha que nesta idade é preciso começar a falar de gajas, porque esta coisa que tenho entre os membros inferiores vai dando uns sinais esquisitos e eu não sei o que fazer. Deverei ir para o armário? E as drogas? Já viste o que é chegar à escola e ouvir os outros meninos falar de seringas e eu não poder perguntar ao meu pai onde hei-de arranjar uma? À minha mãe nem me chego, que só quer saber das novelas mexicanas. Ando mesmo deprimido, meu! Preciso de saber quem é o meu pai, até porque daqui por uns anos vou precisar de falar com o banco dele para pedir um crédito e isto não se consegue de um dia para o outro. Já viste o que é querer comprar um carro e o meu banco recusar o empréstimo porque quer um fiador e eu não tenho? Parece que o velho tem guita que se farta, mas é claro que não estou interessado nisso, nem pouco mais ou menos, mas sempre dava uma ajudinha. Vá lá, Deus, pensa no meu caso, nem que tenhas de pedir àquele senhor da televisão para fazer um ponto de encontro. Eu tomo banho e enfrento as câmaras, se for preciso. Prometo que também posso mandar arranjar os dentes para ficar menos tenebroso e não fazer a minha mãe passar vergonhas perante a vizinhança quando eu for a Carnaxide. Deus, tu que mandaste criar-me, terás de descalçar esta bota por mim, pois eu ainda não alcancei a imortalidade (parece que isso é só aos 33, diz a D. Carminda, que jurou que vou subir aos céus três dias depois, que coisa mais tola) e não tenho os teus poderes. Responde por mail se te der mais jeito.” Ass. menino Jesus.

Só no dia seguinte se apercebeu de uma falha no plano: não tinha a morada do céu. O Natal ainda vinha longe, pelo que não adiantava pedir ajuda ao Pai-Natal, nem isso era recomendável porque os dois eram inimigos viscerais à custa das discussões sobre quem devia descer a chaminé e entregar os presentes na noite da consoada. Adiante. O menino começou a entrar em desespero, tanto mais que os correios estavam em greve e nem sequer sabia o valor do selo que tinha de colar com cuspe na porcaria do envelope...

quarta-feira, março 23

Menino Jesus - Parte II

(...) O menino, que já estava a entrar na puberdade e não conseguia sair da desconfiança de ser filho de pai incógnito - cruzes, como é que o miúdo havia de ser feliz? -, empreendeu um plano para descobrir quem era e onde estava o tal José. Resolveu escrever a Deus. Foi à papelaria da esquina e arranjou um bloco de folhas A4. De borla, em troca dos favores adiantados ao dono da loja, a quem lavava o carro todos os quinze dias.
À luz de uma pequena lanterna de mineiro, para não incomodar a mãe, que dormia no mesmo quarto (os outros dois rapazes partilhavam um sofá-cama na sala e assim estavam mais à vontade para se deixar entumescer com as revistas da playboy que roubavam na escola e que viam à vez cada um), o menino pegou no papel e numa caneta e começou a escrever a carta.

“Querido Deus... não, assim não. Estimado Deus... também não está bem. Ó meu! (melhorzinho), eu sou o menino que tu criaste, lembras-te? Escrevo-te para desfazer uma dúvida. Ando muito triste, pois, como se não bastasse os outros meninos chamarem-me lagartixa e gozarem com a minha roupa, eu não sei quem é o meu pai. Ou melhor, a professora de história, a D. Carminda (que raio de nome e com ela os outros não gozam), diz que ele se chama José e que conheceu a minha mãe numa festa de garagem. Mas depois parece que se baldou mal soube da gravidez (os meus irmãos são só meios-irmãos e também não conhecem o pai, raios partam esta família) e foi trabalhar para o estrangeiro. Da última vez que deu notícias, parece que trabalhava numa carpintaria, mas não sei onde. Tu, ó Deus, que és omnipresente (parece que isto quer dizer que estás em todo o lado), será que consegues espreitar para todas as terras do mundo à procura do meu pai? Caramba. Vou fazer 14 anos e nunca tive um presente de jeito no Natal, que ainda por cima coincide com o dia do meu aniversário, ou seja, tenho direito a duas prendas.
(...)

domingo, março 20

Menino Jesus - intróito e parte I

Meus caros!
Finalmente encontrei este pedaço de não sei que coisa, que comecei a escrever há uns três anos, sensivelmente. Mas só comecei! Quer dizer, portanto, que o que vão ler a seguir, dividido por vários posts para não ser demasiado pesada a leitura, precisa de continuidade. E essa continuidade precisa de alguém que a empurre. Por isso, meus lindos, vocês vão ajudar-me a escrever o resto. Nem que seja só com ideias. Se não o fizerem, castigo-vos com coisas bem piores!!! A sério, abram a vossa imaginação, se fazem favor…
_______

O menino Jesus andava triste como a noite. Deus, que todos afirmavam ser o seu criador, enganara-se nos cálculos e fizera-o marreco, anafado e com a dentição incompleta. De tal forma era feio, que os colegas da escola gozavam-no e chamavam-lhe nomes de répteis, sendo lagartixa o preferido de todos. Lá vem o lagartixa com a fralda de fora e o ranho ao dependuro. Olha o lagartixa com os calções do irmão mais velho, coitado, parece um pelintra. Enfim, todos os dias o menino Jesus tinha de aturar uma série de impropérios pouco recomendáveis na adolescência, que, como se sabe, é fase importante na moldura da personalidade humana. A juventude mostra o homem tal como a manhã mostra o dia, já dizia Milton, mas os companheiros do menino eram pouco dados a questões filosóficas e estavam-se borrifando para a dita integração social. Definitivamente, o menino era um excluído.
Ainda por cima, Deus tinha-o posto no mundo pelo ventre de uma mulher mal cheirosa e bigoduda, gorda e coxa, cuja profissão não abonava nada a favor da tão desejada ascensão à classe social média-alta. Era sopeira, no sentido literal do termo, pelo que passava os dias à volta de grandes panelões na cantina de uma fábrica têxtil da vila. Como se isso não bastasse, chamava-se Maria e dizia-se angélica e pura, quando todos sabiam que nos tempos da juventude tinha sido uma oferecida. Bom, não havia no bairro onde viveu em solteira homem que não lhe conhecesse o cheiro, ou que não tivesse alcançado as suas profundezas por mais do que uma vez.
Como trabalhava de sol a sol, Maria chegava a casa tão estafada que não dava atenção ao puto mais novo nem aos mais velhos, se bem que estes já pouco procuravam o aconchego maternal, de tão interessados que andavam nas filhas da vizinha que morava no andar de cima. Para não ter de cozinhar - sopa, nem vê-la -, passava dia sim dia não pelo McDonald’s e lá levava umas porcarias para os miúdos comerem. Nos outros dias-sim-dias-não, roubava na fabrica uns restos de cozido. Uma vez quase foi despedida porque estava a pôr numa caixa duas coxas de frango frito que haviam sobrado da véspera e que o patrão ainda pensava servir ao almoço do dia seguinte. Sim, já naquela altura as condições laborais eram tremendamente desumanas. No meio de súplicas e alguns favores carnais, Maria conseguiu manter o emprego. Mas ficou-lhe o aviso.
O menino sentia-se desgostoso porque nunca tinha conhecido o seu pai e sabia, desde muito novo, que ia morrer quando fizesse 33 anos. Em casa nunca tinha ouvido falar da gruta em que era suposto ter nascido. A professora de História é que lhe tinha metido essas coisas na cabeça. Carregado de dúvidas, um dia resolveu perguntar à mãe o que era feito do tal José que trabalhava em madeiras. Maria fez um ar de enfado e rosnou: Não me venhas com perguntas estúpidas, que agora estou a ver a novela.
É evidente que o menino já nem se atreveu a perguntar pela gruta. O irmão do meio, que ouviu a conversa, ainda tentou descansá-lo. Disse-lhe que não se preocupasse, que isso da gruta era coisa de gente pobre e que eles sempre tinham vivido naquele bairro social construído durante o Estado Novo. Quanto à verdadeira filiação, nada lhe disse.
(...)

Sono

Sento-me, paciente, à espera que o sono espreite.
Está ali aos pés da cama, indeciso, a pensar se deve ou não... afinal, afinal agora irrompeu pelo meio das riscas e dos quadrados da coberta.
Anda ali, que giro!, a escolher o melhor caminho até mim.
Agora passou em cima dos meus dedos. Ai!, faz cócegas...
Parou porque estava cansado de tanto rir e fazer rir.
Mas agora ficou sério, a fitar-me, como que a dizer que ainda é cedo. Sim, prefere ficar mais um pouco a vaguear pelas suas ideias, a imaginar o sonho que me vai fazer sonhar.
E eu cá estou, paciente, à espera que o sono espreite.
Ontem chegou mais cedo. Sabem?, é que estava cansado e nem quis brincar. Nem olhou para os meus dedos pedintes de cócegas. Não. Subiu a cama e enroscou-se ao meu lado.
Era tão grande que nem me deu um beijo de boa-noite, o malandro!
Hoje parece que vai fazer gazeta e dormir sozinho, como se estivesse zangado. Onde irá ficar, no chão? Por cima dos livros ou sentado na cadeira, até cair de sono e estatelar-se na alcatifa?
Como são complicados os sonos de hoje! Deve ser da violência na televisão. Sim, das novelas, dos filmes de terror ou até dos programas... dos programas, quê? É tudo uma grande seca!
Não admira que o sono ande às avessas, dando turras nele próprio porque não consegue achar o caminho até mim nesta encruzilhada de ideias.
Bolas... e se eu fosse dormir?
Não consigo. É ele quem decide e pronto. Eu limito-me a ficar, paciente, à espera que ele espreite.
Finalmente parece estar a subir as minhas pernas. Sim, lá vem ele. Então?, pareces indeciso. Não quer avançar de qualquer forma, por isso tem de escolher o melhor caminho. Agora vai um pouco pela esquerda, quase encostado à parede.
Pronto! Agora descobriu a anca e não quer outra coisa: sobe e desce a perna como se fosse um escorrega, usufruindo das curvas. Que criancinha!
É mesmo tolo, o meu sono. Está aqui a usar-me que nem um baloiço. Mas é bonito de ver, nem que tenha de esperar a noite toda.
Uma vez passei a noite em claro porque o sono foi beber um copo com os amigos. Palavra puxa palavra, uma cerveja pede outra, sabem como é, e só apareceu já o sol tinha rendido a madrugada. E eu aproveitei para pôr a leitura em dia.
Depois, contou-me que tinha ido a uma discoteca e assistiu a uma briga entre dois homens. Disse que nunca mais queria fazer aquilo e pediu-me desculpa por me ter deixado sozinha.
Eu perdoei-o porque fiquei cheia de saudades do meu sono. Como hoje, embora ele não saiba. Não quero maçá-lo, prefiro esperar.
Enquanto isso, vou-me lembrando da violência na televisão, das minhas leituras, das brigas entre dois e mais homens.
De repente, começo a sonhar um sonho lindo. Porque o meu sono é o mais bonito de todos. É o meu melhor amigo.

sábado, março 19

O GNR passou-se

Noite de sexta-feira, dupla festa de aniversário. Foi uma reunião familiar ao mais alto nível. Tempo para pôr as conversas mais ou menos em dia, para saber como andam os miúdos (a mim perguntam sempre pelos canitos…) e para enfardar. É esta a parte boa dos aniversários, o pessoal enfarda que nem chibos e bebe… ice tea. Três, quatro, cinco copos de ice tea, e no fim, pronto, estamos em festa, emborquei uma tacinha de champanhe.
Estava quase a chegar a casa e, de repente, parecia que todos me conheciam. Ainda se fosse de dia, era capaz de perceber, mas não! Estava uma noite cerrada. Vem um carro e faz sinal de luzes, vem outro e faz sinal de luzes e eu pensei “Porra, já sabem a minha matrícula de cor…”. A resposta estava uns metros mais à frente. Claro que se acendeu logo a luzinha, que disse: é óbvio que os sinais de luzes eram um aviso. E, que não fossem, já estou mais do que habituada a ver ali os homens da GNR, quase à porta de minha casa! E tantas vezes vai o cântaro à fonte, que desta mandaram-me parar.
- “Boa noite, senhora condutora. Os seus documentos e os da viatura”, disse o homem da continência.
- “Isto é uma amostra de Bilhete de Identidade e aqui está a carta. Mas é falsa…”, atirei e logo saí do carro.
Enquanto o homem esquadrinhava os meus papéis e lançava um olhar desconfiado para o banco de trás (deve ter gostado da manta dos cães), eu andava à volta dele. Ao deter-me mais uns segundos na fluorescência do colete, encaminhei a conversa para o novo código. Ele foi ver o selo e o papelinho do seguro, apostos no pára-brisas, e eu achava que ainda faltava ver alguma coisa, até que perguntei: “Quer ver o triângulo?”. Não quis, lá pensou que não era preciso.
Pois eu achei que o homem ficou intimidado. Gajo novo, com um olhar escuro mas firme e um sotaque que atira as suas origens para as berças… Quanto mais lhe falava do novo código, mais ele fixava o olhar em mim, a um mesmo nível, sem ser de fora para dentro do carro. Em tantas operações STOP que me fizeram, nunca fui capaz de ficar lá dentro, sentada ao volante com ar de frete. Transformo tudo em conversa e os polícias passam-se!
O de ontem também, sobretudo quando lhe dei um aceno sorridente ao arrancar para a minha casa, meia dúzia de metros à frente.

sexta-feira, março 18

Resposta ao TT (Tuga transmontano)

Ainda bem, Tuga, que o tenho por aqui! Parece que toda a gente está cheia de vergonha e cheira-me que vai ser você a fazer o que faz falta, que é animar a malta...
Quanto ao "despertares"... vou tentar fugir a esse tipo de cãofissões, que é para não tornar isso demasiado centrado na Lésse, que, sendo cadelinha, obviamente escreve com os pés!
Só não percebo por que raio não aparece a indicação do seu comentário no rodapé. Isto deve estar marado.
Divirta-se até um dia destes!
Espero que não tenha levado ao mal chamar-lhe Tuga...

Despertares

Há coisas muito injustas: pagar impostos, correr para o autocarro e perdê-lo mesmo em cima do último fôlego, não ganhar o totoloto, etc, etc, etc. Mas aquilo que de mais injusto há no mundo é levantar cedo. É sempre injusto. Ainda por cima, quando os olhos acabaram de se fechar para um sonho… Sair da cama porque tem de ser, quando o relógio ainda nem chegou às 7 horas mas já está farto de piar, devia ser proibido por lei.
O que vale é o outro despertador, aquele que é quente, respira e mexe. O dia, mesmo que se perspective merdoso, ganha logo outras cores.

Os olhos são os intérpretes do coração, mas só os interessados entendem essa linguagem, Blaise Pascal

quinta-feira, março 17

Somos muito jeitosos

Tão certo como dois e dois serem quatro, há duas evidências que tenho como incontornáveis, por muito que mude de ambientes e tente frequentar locais de gente atinada, bonita e supostamente interessante: os homens falam de futebol e de mulheres; as mulheres falam de roupa e de... homens! É isso. Experimentem sentar-se cinco minutos à mesa do café e atentem nas conversas desses seres estranhos que pululam por este mundo fora. Não há volta a dar-lhe!
A política é uma miragem, a literatura continua a ser um inimigo público (excepto quando aparecem fenómenos como as rebelos pintos ou os códigos de Da Vinci, que o marketing se encarregou de transformar num best seller de qualidade duvidosa) e os jornais estão cada vez mais votados à eterna condição de folhas mal cheirosas com que se embrulha o não menos mal cheiroso peixe da lota. Ou as castanhas assadas.
Tanto andou o Guterres a falar da educação, e este país teima em ser a Meca dos analfabetos, salvo se em causa está um jogo estúpido em que uns quantos macacos queimam calorias atrás de uma bola. Aí, venha quem vier, o português dá cartas. Sobretudo à segunda-feira.
E elas? Elas, claro está, andam todas na moda, que parece ser vestir blusa justa e calça de cinta descida, mesmo que isso implique ficar com aquelas banhas todas de fora. Mas, que se lixe. Está na moda e pronto, usa-se! Não menos na moda estão as botas bicudas e de fino tacão, que além de todo o desconforto que devem causar são feias como os comboios e fazem mal à coluna. Mas estão na moda e pronto, usam-se! Será que ainda ninguém reparou que anda tudo vestido da mesma maneira, simplesmente porque está na moda? O que é feito do gosto pessoal? Das duas, três: ou ninguém o tem, ou têm todas muito mau gosto. Mas está na moda...
Enfim, por todo o lado se assiste a fenómenos de massificação como estes, em que as pessoas parecem ter um ou dois interesses na vida e o resto, pura e simplesmente, não existe. É desolador o panorama, meus caros, desolador mesmo. Quase tão mau como sairmos de casa a um domingo e vermos que as avenidas junto à praia estão pejadas de parolos. De portas abertas, os carros debitam o relato. Lá dentro, o macho palita os dentes por entre insultos ao árbitro e a fêmea faz malha ou dá o lanche ao puto que está no banco de trás.
Mas onde raio é que param as pessoas atinadas, bonitas e supostamente interessantes?

Não é por as coisas serem difíceis que não temos ousadia. É por não termos ousadia que as coisas são difíceis, Séneca

quarta-feira, março 16

Os amigos

Escolhi a amizade como tema do primeiro post a sério. Não só por as primeiras pessoas a quem dei conhecimento deste blog serem minhas amigas (talvez nem todas, pronto, mas ainda não perdi a esperança), mas também, e aí reside a razão de maior interesse e importância, porque a amizade, conclui eu há uns tempos, é aquilo a que dou mais valor. Quais paixões, quais amores, quais quês?... Os amigos são as únicas pessoas que contam (sem, obviamente, roubar à família o grau que ocupa na hierarquia!), se forem verdadeiros amigos. Isso é evidente.
Atrevo-me a dizer que há vários tipos de amigos. Os que são de longa data, aqueles de quem nos lembramos em primeiro lugar quando surge um qualquer aperto e de quem nunca nos esquecemos, por muito raros que possam ser os contactos.
Depois, há os amigos mais recentes, aqueles que conhecemos por um acaso, por um contacto profissional, por influência de algum outro amigo. Esses, por os conhecermos muito mal, ainda não são propriamente amigos, mas para lá caminham e espero que no bom caminho.
Aligeiremos agora um nadinha a coisa e falemos dos ditos amigos coloridos. Nunca entendi muito bem o que é que isso quer dizer... Que o facto de serem coloridos supõe que todos os outros sejam cinzentos ou a preto e branco? Eu sei, meninas e meninos, que nas vossas cabeças o termo colorido significa que essa pessoa é aquela com quem damos umas voltas, sem compromissos ou ressentimentos, simplesmente porque há que cuidar da pele!!! Pois tenham cuidado... nem sempre os coloridos são eternamente ou só coloridos. Eu também pensava que sim, mas enganei-me. Ficam desde já a saber que um amigo colorido ultrapassou a barreira cromática e hoje é meu amigo a sério. Sem que se tenha quebrado o acordo pelo qual sempre nos pautámos, hoje tenho-o como um bom amigo. Só é pena que adormeça tão depressa...
Há também aqueles que já conhecíamos havia tempo e que só há pouco revelaram a essência da sua amizade: desinteressada, preocupada com os nossos afectos - e outras coisas que nos afectam - e também crítica, quando chega a hora de puxar as orelhas. Aqui, e perdoem-me todos os outros meus amigos a quem abri esta porta, tenho de falar de uma certa rapariga que bebe muito chá. Sim, miúda, estou a falar de ti. Tu, que queres a toda a força apresentar-me o gerente de um certo estabelecimento onde se bebe chá e se fumam umas merdas que sabem a tudo menos àquilo a que dizem que sabem... Tu, que já aturaste os meus telefonemas lamechas e que estás sempre a tentar arrebitar o meu ego, dizendo que a vida é aquilo que fazemos dela. Pois bem, embora nem sempre concorde contigo (desculpa-me, mas não consigo ter um pensamento tão leve), quero que saibas que me tens feito muito bem. As tuas palavras são sábias, tens aquele dom de tornar tudo mais claro, mais simples, de me fazer pensar. É por pessoas como tu que dou tanto valor à amizade.
Agora, uma palavrinha sobre aqueles que pensávamos que o eram, mas, afinal, nunca foram amigos. Nem quero aqui catalogá-los com termos menos abonatórios, para não fazer descer o nível... Infelizmente, por vezes temos necessidade de nos agarrar às palavras que nos dizem e aos elogios que nos fazem, pela simples razão de estarmos na merda e isso nos dar força. Mas o tempo acaba por deixar transparecer o que realmente são: interesseiros, falsos, egocêntricos. Quis o azar que uma dessas pessoas se atravessasse no meu caminho há uns meses e a pancada foi tão forte que hoje ainda estou para perceber o porquê de tanta falsidade. Dói, dói muito e só mesmo a amizade verdadeira nos faz sair desse estado, em que voltámos a duvidar de tudo. Mas isso já lá vai e só espero que a dita pessoa tenha ido para Marrocos! Adeus alfa romeo spider, que, apesar de eu ficar bem nesse volante, como tantas vezes ouvi, continuo a gostar muito do meu carro de pobre!
Já chega, vade retro satanás e abrenúncio, que a vida é para a frente e nunca para trás, nem sequer para o lado, como dizem que se passa com os caranguejos (mesmo aqueles que preferem vestir a pele do lagarto mais famoso da capital catalã). Espero que este blog seja um ponto de encontro das nossas amizades, uma mesa de café, uma forma de dizermos o que nos vai na alma. Pela minha parte, prometo não tornar a leitura enfadonha, mas conto convosco para animar as conversas. Falem do que vos apetecer e mantenham-se anónimos se preferirem, ou lancem um lamiré para que vos descubra... Uma coisa é certa: quem me tem como amiga só me perde se quiser!!!

terça-feira, março 15

Estreia mais ou menos absoluta

Após uma tentativa que saiu mal porque nada percebo disto, vamos ver se agora a coisa vai funcionar